Pânico a conta-gotas

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Por José Oscar,

Os primeiros casos de Aids no Brasil surgiram em 1980. Recordo que ninguém sabia direito que doença era aquela, mas desde 1977, 1978 lembro bem que notícias tristes chegavam dos Estados Unidos sobre um câncer que estaria atacando o sistema imunológico das pessoas, fazendo com que doenças geralmente fracas o suficiente para serem combatidas pelo próprio organismo se tornassem problemas letais. As pessoas já começavam a ficar alerta. Em 1983 instalou-se grande pânico ao redor do mundo, quando se cogitou que a doença poderia ser transmitida pelo ar e utensílios domésticos, após terem sido relatados casos de infecção em crianças nos Estados Unidos. E a notícia alarmante estampada nas manchetes de revistas e jornais da época – “Ocorre a primeira Conferência sobre AIDS, em Denver, EUA. A doença é relatada em 33 países. Estavam confirmados 3.000 casos da doença nos EUA, com um total de 1.283 óbitos”. Daí o pânico alastrou-se feito rastilho de pólvora…

Em seguida, outros casos surgiram e logo ficou claro que havia uma nova doença, um “câncer gay”, Prato cheio para a homofobia, os preconceituosos se apegaram ao fato de a doença ter sido detectada inicialmente na comunidade homossexual como a peça que faltava para que o quebra-cabeça da condenação se completasse: a AIDS foi taxada de castigo divino aos gays e seus hábitos sexuais promíscuos. Nessa época, já se sabendo que uma das formas de transmissão era por via sexual, os gays já procuravam formas de evitar o contágio. E o medo propagou-se de forma alarmante entre essa classe.

Contudo, mais adiante, descobriu-se que a doença não fora detectada somente em homossexuais masculinos. Recordo que na mesma ocasião, heterossexuais, principalmente os hemofílicos, também foram atacados pelo HIV, via transfusões ou mesmo relações sexuais desprotegidas. As pessoas que necessitavam de transfusão de sangue ficavam apavoradas, pois não tinham certeza se o sangue estaria contaminado. Também houve pânico entre os doadores de sangue, por receio de se contrair a doença no momento de colhimento do produto. Naquela época, eu era doador assíduo e, por medo e desconhecimento também me afastei.

Nos anos seguintes, a doença se espalhou para heterossexuais e mulheres – até então considerados a salvo da epidemia – que haviam passado por cirurgias ou recebido transfusões de sangue. Foi então que a doença ganhou o nome de AIDS.

Mas o mundo gay, infelizmente, continuava a ser atacado pelos conservadores que já haviam se apoderado e não largariam fácil a idéia de que a AIDS era o resultado da desobediência dos homossexuais à moral, o legado dos gays à humanidade, a “peste gay”, motivo mais que suficiente para trancá-los definitivamente no armário. Essa idéia foi uma verdadeira tortura. A classe não era vista com bons olhos. Ouvia- se, vez ou outra, certas colocações esdrúxulas, do tipo: “Penso que não vou sair do armário, porque a coisa está pegando entre os gays. Continuar com mulher pode ser a melhor opção”. O descaso e o preconceito cresciam na mesma proporção. A situação ficou tão tensa que alguns gays aderiram à idéia absurda e obsessiva dos conservadores, tipo, se estão falando por aí que veados transmitem a doença, é sinal de que tem um fundo de verdade.

E lamentavelmente começamos a perder muitos artistas de quem gostava muito. Dentre eles, Cazuza, – a primeira personalidade pública a assumir que estava doente. Morreu no Rio de Janeiro, em 7 de julho de 1990, com 32 anos de idade. Lembro da cara de Cazuza, assolada pela doença, estampada na publicação da revista Veja de 26 de abril de 1986(tenho ela guardada até hoje), onde se lia “Cazuza – uma vítima da AIDS agoniza em praça pública”. Fiquei profundamente chocado. Via uma espécie de ídolo sendo consumido pela terrível e ainda pouco conhecida doença. Depois, Freddie Mercury e Renato Russo – em 1991e 1996, respectivamente.

Sabe-se, hoje, com segurança, que a AIDS não é doença dos gays.É claro que o fato de a epidemia ter sido detectada em um determinado grupo restrito facilitou seus estudos e a tomada de decisões que viriam a controlá-la em todo o mundo. Foi a partir dos homossexuais que se constatou, por exemplo, que a AIDS era transmitida por via sexual. Foi da mobilização dos homossexuais que surgiu uma das mais honestas e eficientes formas de prevenção que é o conceito de sexo seguro.

Hoje, graças a Deus, há testes, medicamentos gratuitos, campanhas de informação e distribuição de preservativos para prevenção de todos. Em se comparando com outrora, a situação torturante de temor que imperava, transformou-se hoje em quietude. O pânico e o preconceito diminuíram cedendo lugar à conscientização da prática sexual segura, independente da orientação. E a vida continua…

José Oscar é professor de Português, formado em letras na Pontífica Universidade Católica do Paraná (PUC-PR)

 

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